Prescrição em Coma: uma Injustiça Constitucional

Uma questão de concurso público para juiz de direito tem causado perplexidade entre os candidatos. Segundo o gabarito, João, que ficou seis anos em coma após ser atropelado por Maria, embriagada, não pode mais processá-la por danos civis. A justificativa? O prazo prescricional de três anos já teria transcorrido.

Sim, você leu corretamente. João, em coma por mais de dois mil dias, teria dormido também o seu direito à reparação. Para muitos concursandos, isso soa como um disparate jurídico. E de fato é! A resposta oficial se escora em uma leitura literal do Código Civil após o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), ignorando por completo a Constituição, a boa-fé objetiva e o princípio da actio nata.

Esse tipo de abordagem, centrada no texto nu da lei, lança os candidatos em um verdadeiro labirinto hermenêutico, onde o bom senso, a justiça e a lógica parecem não ter lugar. Neste artigo, procuro mostrar por que considerar a prescrição em coma uma injustiça constitucional fere diretamente a estrutura racional do Direito. É tempo de resgatar a interpretação conforme a Constituição e a humanidade por trás das leis.

O literalismo que cria injustiças

O Código Civil, no artigo 198, estabelece que a prescrição não corre contra absolutamente incapazes. Após o EPD, a única situação de incapacidade absoluta é a de menores de 16 anos.

Com isso, pessoas que não podem exprimir sua vontade, como em estado de coma, passaram a ser consideradas apenas relativamente incapazes. E, segundo essa lógica fria, estariam sujeitas à contagem normal do prazo prescricional.

O problema é evidente. Aplicar essa regra literalmente ignora o fato de que o coma retira da pessoa qualquer possibilidade de agir ou de exercer seus direitos. Não há como João, ou qualquer pessoa em coma, exercer sua pretensão ou contratar um advogado.

A questão, então, revela um exemplo claro da prescrição em coma: uma injustiça constitucional, pois transforma uma situação de vulnerabilidade extrema em obstáculo ao exercício da cidadania.

A doutrina e a lógica do Direito

A boa doutrina civilista e constitucional já vem criticando esse tipo de interpretação reducionista. Autores como Flávio Tartuce e Pablo Stolze defendem que a impossibilidade de exprimir a vontade ainda deve ensejar a suspensão da prescrição. Além disso, o princípio da actio nata ensina que o prazo prescricional só começa a correr a partir do conhecimento do dano. Se João está em coma, não tem consciência de seu direito violado.

A própria jurisprudência do STJ já reconheceu que, em situações semelhantes, o prazo deve se iniciar apenas quando houver efetiva possibilidade de exercício da ação. A lógica se impõe: prescrição sem ciência do dano é negação do direito. O artigo 200 do Código Civil também reforça esse entendimento, ao suspender a prescrição enquanto existir persecução criminal relacionada ao mesmo fato.

Assim, mesmo na ausência de previsão expressa, é legítimo aplicar por analogia essa proteção às pessoas em coma. Não se trata de interpretação extensiva sem base, mas da aplicação dos princípios mais elementares da justiça.

O papel da Constituição

A Constituição Federal garante, no artigo 5º, o direito de acesso à justiça, a dignidade da pessoa humana e a proteção às pessoas vulneráveis. Esses pilares não podem ser ignorados.

Quando se interpreta a norma civil de forma literal e se esquece o texto constitucional, comete-se uma grave violação sistemática. Leis infraconstitucionais devem ser lidas à luz da Constituição, jamais contra ela.

A prescrição em coma: uma injustiça constitucional é exatamente isso, a aplicação de uma regra pensada para proteger, mas que, em leitura desviada, passa a punir o vulnerável e proteger o agressor.

Essa distorção revela a urgência da chamada interpretação conforme a Constituição. A própria doutrina alemã, ao falar em verfassungskonforme Auslegung, aponta esse caminho: uma lei só é constitucional se interpretada em harmonia com a Lei Maior.

O impacto nos concursos públicos

Em concursos públicos, especialmente para carreiras jurídicas, espera-se que o candidato demonstre capacidade crítica e sensibilidade constitucional. O problema é quando a banca exige uma resposta meramente literal, ignorando as consequências jurídicas e humanas da escolha.

A exigência de adesão a esse tipo de gabarito revela um descompasso entre o que se ensina nas melhores doutrinas e o que se cobra nos exames. Candidatos que pensam de forma sistêmica e constitucional são prejudicados.

O STF já deixou claro que é possível anular questões de concursos quando há erro grosseiro, violação ao edital ou afronta à Constituição. O caso de João se encaixa exatamente nessa moldura.

O concurso que aceita a prescrição em coma: uma injustiça constitucional acaba por testar a capacidade de decorar leis desatualizadas, e não a aptidão para aplicar o Direito como instrumento de justiça.

Conclusão

João não podia exercer seus direitos. Estava em coma. Tratar essa condição como desleixo é desumano, injusto e inconstitucional.

A prescrição não pode correr contra quem sequer tem consciência do mundo à sua volta. O Direito não existe para blindar quem atropela bêbado, mas para proteger a dignidade de quem sofre com isso.

A prescrição em coma: uma injustiça constitucional é um alerta. Leis não se interpretam sozinhas. Elas ganham vida à luz dos princípios que as justificam. Para quem estuda para concursos, fica o recado: mais do que conhecer a letra da lei, é preciso saber ler a Constituição que a sustenta.

Referência: Consultor Jurídico

Retornar ao Início do Blog

Deixe um comentário